A Luta contra o aumento das passagens e o Anarquismo

O Contexto da nossa luta

cabNesse primeiro semestre houve diversas mobilizações de norte a sul do Brasil que enfrentaram a reação conservadora dos governos, do aparelho repressivo e da mídia. Desde as lutas em defesa do transporte público nas capitais, passando pelas greves nos canteiros de obras do PAC, até a resistência indígena dos povos originários, todas essa lutas foram alvos da criminalização do protesto que segue em curso no país sede da Copa do Mundo. Vivemos um dos momentos mais agudos da luta de classes no Brasil. O capital internacional avança diariamente a passos largos, explorando os trabalhadores e as trabalhadoras na busca do lucro.

RESISTÊNCIA DOS/AS OPRIMIDO/AS X VIOLÊNCIA DOS OPRESSORES

Uma consequência dessa lógica do capitalismo se expressa no transporte. Somos diariamente violentados. Esperamos em intermináveis filas, viajamos horas em transportes superlotados e sem manutenção, correndo risco de vida. Sofremos com o a violência da ganância, do descaso, da roubalheira, das máfias das empresas de transporte público, ajudadas pelos governantes a lucrarem cada vez mais. Mas quando o povo vai para as ruas reclamar contra esta injustiça o que acontece? É violentado! Tropas de choque, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, bombas, balas de borracha à queima roupa que podem cegar ou até matar. Todo um aparato de guerra é usado contra o povo, e dezenas de manifestantes são presos e feridos pela polícia. Tanto a truculência da polícia e o descaso do poder público para o social, quanto o desrespeito que os empresários do transporte público nos fazem passar diariamente, todas estas são formas de violência contra o povo. E todas as formas que o povo usa para se defender contra esta violência são legítimas. Toda forma de resistência, ainda que com táticas distintas é legítima. A violência em todos os atos SEMPRE começou com a polícia, a fiel defensora das elites e da burguesia. Polícia, que curiosamente foi apoiada em sua última greve por legendas políticas de esquerda que hoje caluniam o anarquismo para “encontrar” um bode expiatório que divida a nossa luta.

foto das manifestações no rio grande do sul. fonte:resistenciapopular.blogspot.com.br

LUTAR NÃO É CRIME

O povo, organizado nos movimentos sociais, manifestando-se por justiça, não pode ser criminalizado, agredido ou preso. Devemos ter cuidado com a estratégia dos poderes dominantes de criminalizarem “individualmente” militantes e ativistas que lutam contra o aumento da passagem. Muitos já estão com processos nas costas por lutarem. Lutar não é crime! Não podemos deixar que nossos companheiros/as sejam criminalizados/as! Essa criminalização deve ser denunciada! Essa é a verdadeira face da democracia burguesa, escondida de dois em dois anos nas urnas e propagandas eleitorais mas que mostra suas garras quando surge a resistência! Não podemos reforçar dentro das nossas fileiras o discurso de criminalização daqueles que lutam tentando encontrar bodes expiatórios no nosso movimento. Todos/as aqueles/as que saem às ruas para se opor a máfia dos transportes são ilegais por natureza, pois enfrentam a burguesia e o Estado de “direito/a”.

NOSSA CONCEPÇÃO DE ANARQUISMO

Nós anarquistas organizados politicamente na Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) participamos modestamente de diversas mobilizações e cerramos fileiras com trabalhadores e militantes em diversos estados do país. A CAB é uma instância que reuniu diversas Organizações Anarquistas Especifistas de todo o Brasil para articular a luta e construir no futuro uma Organização Anarquista em nível Nacional. É constituída por 9 Organizações de diferentes Estados, de base Federalista que constrói – a partir de práticas concretas – unidade estratégica e maior organicidade para intensificar a inserção social no seio de nosso povo. Nesse sentido, são mais de 10 anos de resgate do Anarquismo enquanto corrente libertária do Socialismo, organizada politicamente e inserida socialmente. A CAB é formada por uma diversidade de sujeitos sociais que acreditam na já antiga mas atualíssima máxima que diz que a “emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, porém aliada também a histórica prática da organização do anarquismo enquanto partido, como foi a Aliança da Democracia Socialista de parte da Ala Federalista e Anti-autoritária da 1ª Internacional (Bakunin, Guillaume, Malatesta, Cafiero e outros) e também da nossa irmã Federação Anarquista Uruguaia, que se manteve atuante durante a ditadura militar uruguaia enfrentando esta com inserção popular/estudantil e com um aparato armado.

No entanto, nossa rica história que se confunde com a história da classe trabalhadora é muitas vezes atacada, desmerecida ou deturpada: muitas vezes trata-se do simples desconhecimento ou a reprodução de discursos simplificadores e reducionistas, porém, muitas vezes se trata da má fé, do preconceito e da necessidade de construção política na base da calúnia, auto-promoção e mentiras. Não nos surpreendemos quando estes ataques partem da mídia corporativa/burguesa, que tenta sempre criminalizar e estereotipar aqueles que lutam. Mas quando vem das fileiras de nós trabalhadores, devemos nos posicionar de maneira firme para combater o sectarismo que sempre divide a luta popular. Recentemente, o último texto que tivemos contato e que faz referência aos “anarquistas” nestes moldes é uma nota lançada pelo setor de juventude do PSTU em meio a luta contra o aumento das passagens. Assim, nos posicionamos nacionalmente não para entrarmos na briga de quem é mais revolucionário ou possui a verdadeira interpretação do período em que vivemos, mas sim porque julgamos necessário combater as calúnias e evitar a confusão em nossas fileiras.

Nossa implicação enquanto CAB se dá por um conjunto de motivos que normalmente são veiculados em materiais como o que nos referimos acima: generalização e estereotipação do anarquismo; acusação de que somos uma seita esquerdista e que não teríamos nenhuma responsabilidade; de que somos anti-partidários; de que seriamos sectários e intransigentes, que fazemos alianças somente com quem pensa da mesma forma que nós; que atacamos toda e qualquer entidade sindical, estudantil e popular como sendo burocrática e desnecessária à luta e o pior, dizer que nós anarquistas classistas e revolucionários somos apenas liberais/pequeno-burgueses que defendem a luta “individual” como estratégia de luta.

Nós da CAB fazemos parte de uma tradição político-organizativa (anarquismo “especifista”) que nasceu no seio dos trabalhadores. Tem esse nome porque retoma princípios básicos do anarquismo e reafirma a necessidade de nos organizarmos politicamente enquanto militantes anarquistas e socialmente nos movimentos populares. Essa necessidade política se expressa por meio de uma Organização Política Anarquista, Federalista e de Quadros, com critérios de ingresso, formação militante, dotada de um Programa Mínimo, Estratégia de Curto e Longo Prazo e Objetivo Finalista. Não apostamos portanto, na luta “individual” e desorganizada como estratégia de vitória mas sim no acúmulo de força social nos movimentos populares. Dessa forma, não somos espontaneístas, achando que a organização popular virá por ela mesma. Ao contrário do que alguns dizem, seguimos contribuindo com o fortalecimento dessa organização, com esforços modestos mas firmes, no movimento popular, sindical, estudantil e camponês em diversos estados deste país.

Cabe também sublinhar que não temos a pretensão de como organização política anarquista e classista “representar” a totalidade dos anarquistas fora da nossa coordenação, assim como não exigimos a determinados partidos marxistas que respondam pela totalidade dos marxistas. Somos parte de uma organização política anarquista classista que trabalha com princípios em comum, critérios de ingresso, estratégia militante e unidade teórica/ideológica. Neste sentido, rejeitamos a associação preconceituosa de qualquer um que vincule de modo quase que automático o anarquismo a desorganização, sendo que não há nenhum elemento histórico que embase esta afirmação. Respeitamos, ainda que com diferenças, as distintas formas de associação, sejam elas partidárias, independentes ou de outras bandeiras políticas que venham se somar a luta. Mas rejeitamos quaisquer tentativas de dividir o movimento internamente. O sectarismo venha de onde vier é danoso e divide a classe.

Mesmo com as diferenças de prática política e ideológicas, acreditamos que o respeito mútuo entre os setores da esquerda é algo que fortalece a luta. Devemos saber o momento de fechar o punho contra o capital. Por isso exigimos o respeito pelas contribuições históricas do anarquismo, enquanto corrente libertária do socialismo, na luta junto ao movimentos dos trabalhadores, como no campo do sindicalismo revolucionário e camponês, e atualmente com nossa modesta e consequente atuação e contribuição em diferentes campos de luta social (agrária, sindical, estudantil, comunitária).

A UNIDADE DA LUTA

Consideramos que a unidade na luta e a organização pela base são os principais caminhos para derrotar a máfia dos transportes, construído com a unidade de diversos setores da esquerda numa bandeira em comum: a derrota da máfia dos transportes e a luta contra o reajuste pela força das ruas. Tendo isso em vista, nós da CAB integramos, construímos e respeitamos todos os espaços de deliberação coletiva que organizaram as lutas contra o aumento da passagem em diversos estados. Ao contrário da calúnia circulada pelo PSTU sobre o anarquismo não somos espontaneístas e tampouco desrespeitamos a disciplina coletiva.

Cabe ressaltar que a luta não pode ser capturada por um partido, domesticada por uma legenda, por que a luta é uma tarefa da classe. A luta também não é “apolítica” e desorganizada. Porque nela nos formamos, aprendemos com os erros, crescemos e acumulamos força para o dia seguinte. Defendemos uma unidade construída sem sectarismos e com respeito às diferentes forças da esquerda. Fazer uma luta apartidária é diferente de fazer luta anti-partido. Isso significa respeitar as legendas/bandeiras que atuam no interior da mobilização popular, unindo as diferentes forças políticas por pautas em comum.

A VERDADE QUE INCOMODA: UM MOVIMENTO QUE NÃO FOI CAPTURADO

O que mais incomoda algumas legendas políticas é o fato deste movimento social, que saiu as ruas para enfrentar o governo e os patrões, não ter sido capturado por nenhuma vanguarda “esclarecida” ou partido político. É propício lembrar que alguns desses partidos que hoje condenam do alto de sua arrogância as fraquezas desse movimento popular/estudantil diziam algum tempo atrás informalmente por seus militantes “que não haviam condições objetivas para se fazer essa luta”. Felizmente eles foram contrariados e até mesmo, arrastados pela vontade da luta popular que moveu milhares. Esse movimento, apesar de compartilhar muitos princípios comuns ao nosso setor libertário e também com táticas de luta da classe trabalhadora não pode ser claramente identificada a nenhuma ideologia política apesar de em seu interior conter diferentes ideologias da esquerda. O movimento também não surgiu de nenhum partido político, apesar de ter sido construído com esforço de muitos militantes de partidos, o que deve ser valorizado. Isso não significa que este movimento não tenha problemas. Mas como diria um histórico companheiro da esquerda é “melhor dar um passo com mil do que mil passos com um” e vamos seguir trabalhando para construir e organizar melhor a luta contra o aumento das passagens junto com outros setores políticos sem a pretensão de nos tornarmos “os donos do movimento”.

Temos consciência das inúmeras deficiências e obstáculos que precisamos enfrentar e que enfrentaremos dentro dessa luta. No entanto, também temos consciência de nossa sinceridade, modéstia e firmeza naquilo que nos propomos. Nos últimos 10 anos temos participado em maior ou menor grau de diversas lutas, construções, embates na América Latina e no Mundo e, independente das divergências com outras tradições do Socialismo exigimos respeito. Estamos juntos e lado a lado na luta pelo Socialismo e pela Liberdade e daqui não nos retiraremos. Seguiremos na luta contra o aumento do transporte em diferentes Estados à despeito da calúnia da mídia burguesa e de infelizmente, alguns setores políticos.

Derrotar o aumento pela organização popular coletiva/de base e pela força das ruas!!! Lutar, criar, poder popular!

 

Espaço Socialista Nº 9

espaço

Dado o atual contexto de mobilização no Brasil, o Coletivo Anarquista Núcleo Negro apresentará um pouco da sua leitura da atual conjuntura. (em breve publicada em texto)

espaço socialista 9. protestos no brasil: o que fazer?
data: 29 jun 2013, sábado
local: sinttel [sindicatos dos trabalhadores em telecomunicações de pernambuco]
rua afonso pena, 333, boa vista, recife-pe
referência: mesma rua da reitoria da universidade católica.
hora: 9h30-13h30

 

 

 

Desenvolvimento dos de cima versus lutas dos de baixo

Reflexões sobre o evento eleitoral no Recife em 2012 

“Eleger um senhor, ou muitos senhores, seja por longo ou curto prazo, significa entregar a outra pessoa a própria liberdade. (…) Votar significa formar traidores, fomentar o pior tipo de deslealdade. (…) Hoje seu candidato se curva à sua presença; amanhã ele o esnoba. Aquele que vivia pedindo votos transforma-se em seu senhor. Como pode um trabalhador, que você colocou na classe dirigente, ser o mesmo que era antes já que agora ele fala de igual para igual com os opressores? Repare na subserviência tão evidente em cada um deles depois que visitam um importante industrial, ou mesmo o Rei em sua ante-sala na corte! A atmosfera do governo não é de harmonia, mas de corrupção. Se um de nós for enviado para um lugar tão sujo, não será surpreendente regressarmos em condições deploráveis.”

Élisée Reclus, “Votar é abdicar!” (Carta a Jean Grave, 1885).

 

A política se faz no dia a dia da luta, não nas urnas. Por isso, pensar sobre as eleições nos leva a analisar o que acontece nos quatro anos que intercalam uma e outra ida aos locais de votação. É este caminho de desmandos dos governos que leva ao massacre cotidiano do povo. O resultado dos votos apenas indica qual será o próximo engravatado a cumprir o papel de opressor, a ocupar a estrutura do Estado para implementar o governo de poucos sobre muitos.

Discutir o pleito eleitoral em Recife, portanto, trata-se primeiramente de resgatar como o povo da cidade resistiu à opressão dos governantes e, a partir daí, perceber como o propagado desenvolvimento do Estado de Pernambuco e o processo de crescimento da Região Metropolitana do Recife apenas contentam os empresários e não pretendem atender aos anseios populares.

Ora, a correlação de forças do topo importa muito mais a quem quer estar nele. Debater a disputa de legendas significa acreditar que votar em um candidato vai de alguma forma beneficiar o povo. Para além da ficção eleitoral, a política feita nas lutas prova que não.

 

Luta pela moradia versus Verticalização

No início do ano a comunidade do Bom Jesus, na Zona Sul, foi cruelmente expulsa em nome da construção da Via Mangue, obra que “solucionaria” o problema dos engarrafamentos na região mais motorizada da cidade. Sob a bagatela de R$5000 de indenização para o pagamento de um novo imóvel(!), a polícia foi acionada para empurrar, como sempre, os moradores ou para as margens da cidade ou simplesmente para um conjunto habitacional com feições de campo de concentração qualquer. Famílias inteiras e trabalhadores de todo tipo iam simplesmente ser desapropriados em nome do escoamento da produção da indústria automobilística – vide o polo automotivo ligado à Fiat que irá se instalar sob a guarda do governo do estado. Em bom português, automóveis e estradas demonstram em mais este caso ter maior relevância para o Estado que a vida de cidadãos e moradores pobres. A comunidade resistiu: ocupou a câmara dos vereadores e, logo após, a prefeitura e exigiu manter-se no espaço.

O fato ora descrito parece ir contra a grande oferta de moradias na cidade. Quem anda pelo Recife percebe a proliferação de obras em diversos bairros. A especulação imobiliária atinge níveis homéricos, resultado da demanda por moradias gerada pela chegada de indústrias e pelo polo de Suape. As construtoras aceleram o ritmo de entrega dos apartamentos e Recife se transforma cada vez mais em uma cidade vertical. É o progresso capitalista batendo incomodamente às nossas portas. E, como se espera, prejudicando o povo.

Nenhuma destas unidades habitacionais supre a demanda popular por moradia. Pelo contrário.  Produzidas para uma classe média migrante, os milhares de apartamentos serão vendidos a juros altos embutidos nas prestações dos financiamentos bancários ou alugados a preços cada dia mais caros.

Não à toa, as mesmas empresas que lucram com a especulação imobiliária da Região Metropolitana são beneficiadas nos processos licitatórios para as “grandes obras” pré-Copa, a exemplo da Queiroz Galvão, responsável pela famigerada Via Mangue. Os grandes eventos que se aproximam estão acelerando a expulsão de comunidades pobres como o Bom Jesus graças à execução de obras que adequam a cidade para a recepção de um grande volume de turistas em 2013 e 2014.

O “progresso” e o “crescimento econômico” se constroem sobre a destruição das iniciativas dos oprimidos e explorados, que resistem e lutam para manter o que já conquistaram.

 

“Limpeza” da cidade: fora camelôs!

O tradicional comércio de rua da cidade está ameaçado. Pelo menos desde 2011 os vendedores estão sendo coagidos a parar de trabalhar. Primeiro, na região central: a prefeitura (ligada ao PT) orientou a Dircon, órgão responsável pela fiscalização, a retirar os trabalhadores da região da rua Sete de Setembro e rua do Hospício. Quem vendia lanches próximo das escolas públicas, se dizia, também estaria ameaçado.

Os trabalhadores protestaram, se organizaram e ocuparam as ruas e a Câmara Municipal da cidade. Com isso, parte dos trabalhadores do Centro conseguiu permanecer, mas durante meses, trabalhadores removidos da Sete de Setembro ficaram sem local de trabalho, à espera do Camelódromo prometido pela prefeitura e do auxílio-desemprego.

No meio do ano passado foi a vez dos barraqueiros da Zona Oeste. As históricas barraquinhas de lanche construídas ao redor da Universidade Federal de Pernambuco foram ameaçadas de remoção. As primeiras a serem ameaçadas foram as barracas localizadas à frente do Hospital das Clínicas, logo despejadas em uma operação quase cinematográfica de tão grande e truculenta. As cerca de 20 barracas, de pessoas que estavam trabalhando lá há quase 20 anos foram surpreendidas com uma força estatal digna de guerra: Dircon, CTTU, Polícia Militar e Batalhão de Choque, além de um helicóptero. Todo este aparato cercou os trabalhadores, que fizeram uma corda humana para tentar impedir a demolição de sua fonte de sustento. De nada adiantou: a força repressora DERRUBOU as barracas. A única garantia que tiveram foi a de não poderem mais trabalhar naquele local.

A luta dos barraqueiros continua na tentativa de garantir direitos mínimos, o que se traduz em impedir que todos os demais sejam removidos. Com a organização deles, as expulsões na região da Universidade foram suspensas e estão sendo negociadas. Mas as remoções continuam em outros lugares.

Agora é a Zona Norte o foco das ações de “limpeza”. A região de Casa Amarela, com um dos maiores mercados do Recife, contava com uma grande concentração de comerciantes nas ruas e calçadas próximas ao camelódromo oficial. A história se repete: polícia acionada, trabalhadores sendo assediados e impedidos de trabalhar por fiscais da Dircon, criminalização do povo. A desculpa usada para a remoção é de um primor à toda prova: o comércio de rua “atrapalhava o trânsito”(!)… Para além da conversa pra boi dormir, os reais interesses por detrás são abafados, a saber, a concorrência com os comerciantes lojistas, representados pela CDL-Recife (Câmara dos Dirigentes Lojistas do Recife), além, é claro, da onipresente Copa do Mundo…

 

Mobilidade?

Se locomover em Recife está ficando cada dia mais difícil: todo o mês de janeiro, às vésperas do carnaval e em época de férias, aumenta o preço da passagem de ônibus. Neste ano não foi diferente. Mais 15 centavos na tarifa. Em reação ao aumento abusivo, novamente se organizaram protestos para exigir a revogação da medida e denunciar o caráter privado do transporte coletivo na região metropolitana do Recife.

Neste ano, contudo, os manifestantes sofreram uma repressão desmedida. O governo do estado e a prefeitura provaram que são capazes de permitir atrocidades para rezar pela cartilha dos empresários do transporte – um punhado de cinco famílias que controlam toda a frota. No primeiro dia de protestos, a polícia jogou bombas de gás lacrimogênio dentro da Faculdade de Direito, ligada à Universidade Federal de Pernambuco, onde, em tese, não poderiam agir. Já no dia seguinte, a polícia exercitou o que sabe fazer melhor – atirar tanto bombas quanto balas de borracha e dar porrada – sobre um pequeno grupo de manifestantes desarmadosque chegaram a se ajoelhar perante suas investidas, em tom pacífico. Um estudante foi exemplarmente agredido com um soco que lhe arrebentou o nariz. O batalhão atacava a todos, sem distinção.

Tantos foram os desmandos que até mesmo a imprensa, rotineira inimiga de protestos e manifestações, pronunciou-se contra o que acontecia nas ruas. O governo não teve outra saída senão recuar. Mas o estrago já havia sido feito e milhares de pessoas passaram a apoiar presencialmente os atos gritando em uníssono palavras de ordem contra o governo do estado na figura de Eduardo Campos, que além de xingado, passou, ali, a ser chamado de “ditador”. Uma das primeiras manifestações históricas de massa contra um governante que as pesquisas vulgarmente apontam como tendo mais de 80% de aprovação…

Entretanto, o aumento se manteve e, no frigir dos ovos, manifestantes e população em geral saíram prejudicados. Alguns dos que participaram dos protestos carregam até hoje as marcas das balas de borracha no corpo e a população continua obrigada a, todos os dias, enfrentar o drama de conseguir apenas sentar nos ônibus e/ou continuar a espera homérica de 30 ou 40 minutos nas filas das integrações. E, para coroar, pagando uma das passagens mais caras do Brasil.

Já quem tenta não ficar sob a dependência dos ônibus ou do metrô usando a bicicleta como transporte alternativo, não paga a tarifa, mas sofre com as ruas cheias de carro e sem nenhuma adequação para o livre trânsito sobre duas rodas. E quando a prefeitura da cidade de alguma maneira beneficia quem vai e volta do trabalho pedalando, logo volta atrás em nome da melhor circulação de carros.

Pouco antes das eleições, a CTTU (órgão municipal que cuida da ordenação do transporte) implantou uma ciclofaixa nas principais avenidas da Zona Norte. Obviamente, com a retirada de uma faixa de carros para o uso das bicicletas, deixando o restante para ônibus, automóvel, táxis, etc, o trânsito já caótico da região piorou. Rapidamente os burgueses moradores das redondezas protestaram contra as mudanças no trânsito que, indiretamente, eram causadas pela ciclofaixa e diretamente eram motivadas pelo privilégio ainda dado ao transporte privado. Pouco tempo depois, a prefeitura retirou parte da ciclofaixa que afetava os bairros de classe alta da área. Em protesto, ciclistas pintaram uma ciclofaixa na avenida Rosa e Silva, mas a ciclofaixa oficial continua apagada.

Duas vezes o povo pobre foi prejudicado: o aumento das passagens onera ainda mais nossos bolsos, pois agora se gasta, no mínimo, R$4,30 por dia para ir ao trabalho e voltar pra casa. Já a retirada da ciclofaixa mantém a insegurança no trajeto cotidiano dos ciclistas, muitos deles simples trabalhadores que usam o modal como meio de transporte.

No frigir dos ovos, a prioridade do governo e empresários claramente é a locomoção individual e motorizada. Com uma fábrica da FIAT, como já dito, em Pernambuco e parcelamentos cada vez mais baratos para carros e motos, o trânsito de Recife não flui e vivemos com o fantasma das obras solucionadoras do “problema do tráfego”. Surgem as propostas de grandes obras para “melhorar” o caos urbano, a exemplo dos 10 viadutos que se pretendia construir sobre a avenida Agamenon Magalhães. Elefantes brancos criados para mascarar a raiz do problema: o sucateamento do transporte coletivo e a inconsequente insegurança dos ciclistas estimulam o aumento exponencial da frota de carros e motos na cidade. Ganham as indústrias petroleira e automobilística. Novamente perde o povo.

 

A farsa dos de cima e a necessidade da organização desde baixo

Durante todos os dias do ano, reclamamos dos absurdos ora citados e lembramos o quanto estas elites nos exploram. Mas em época de eleição parece até que estas figuras, as quais em silêncio nos massacram cotidianamente, podem mudar algo. A nossa raiva muitas vezes se direciona a um político e votar em outro parece solução. Falso. As opressões que sofremos todo dia não aparecem na propaganda. O candidato que hoje pede voto somente irá continuar reprimindo quem luta para beneficiar quem lucra.

A partir das lutas populares, fica claro que a tríade indústrias, construtoras e Copa do Mundo é a verdadeira base do projeto dos governos e empresários para a cidade. É devido aos falsos representantes e suas políticas de fomento da economia que o povo sofre cotidianamente com expulsões, falta de moradia e dificuldade de locomoção. Eles criam o mal com o qual prometem acabar. E não importa a legenda.

Vale comentar que nestas eleições a maior disputa estava entre projetos que se colocariam no campo da esquerda. Um, do Partido dos Trabalhadores (PT), o outro, do Partido Socialista Brasileiro (PSB). O PT buscava manter a administração do Recife e o PSB conquistá-la, tendo como principal trunfo a figura do Governador Eduardo Campos como cabo eleitoral.

O PT, que para muitos deixou uma boa herança para a cidade com a administração da década de 2000, é o mesmo PT que levou à frente as obras da Via Mangue, expulsou os moradores das palafitas de Brasília Teimosa e está levando à frente a privatização da área de galpões no Recife Antigo. Já o PSB é o partido do neto de Miguel Arraes, o qual faz questão de usar o parentesco para garantir uma fatia de poder para membros da família.  Nepotismo descarado: a mãe, Ana Arraes, figura como presidente do Tribunal de Contas do Estado, governado por seu filho. Sem contar a absurda repressão aos protestos contra o aumento das passagens deste ano, a privatização paulatina da saúde, através dos convênios escusos com o IMIP, e o sucateamento da educação pública, com a retirada do ‘Plano de Cargos e Carreiras’ dos professores além de altos investimentos numa falsa inclusão digital, com a entrega de tablets para docentes e alunos, que pouca melhora traz à qualidade do ensino.

Maravilhas das gestões “populares” que nunca aparecem no guia eleitoral. Ao fim de tudo, foi a chamada direita que saiu ganhando no pleito. O PSDB, com um candidato egresso do Partido Verde (PV), conseguiu o segundo lugar na disputa e desbancou o Partido dos Trabalhadores. Em primeiro, ficou o candidato do PSB, Geraldo Júlio, figura até então desconhecida da população, agora representante do governador do Estado na prefeitura e futuro executor dos projetos do partido para a cidade – um “laranja político”. Em último lugar ficou o povo, espectador cuja única garantia é a continuidade das obras milionárias de destruição da cidade e, deste modo, da qualidade de vida.

Assim, a disputa de cinema das propagandas serve para mascarar as reais práticas dos políticos e partidos. Práticas reproduzidas por eles nos movimentos sociais, os quais constantemente tentam aparelhar para impedir a queda de suas máscaras. Na realidade, os partidos são o câncer dos movimentos, aqueles que se inserem nos espaços para garantir a estabilidade dos atuais governos autoproclamados de esquerda ou para projetar novos. Vejamos. Sindicatos domesticados e burocratizados servem como correia de transmissão dos interesses de centrais pouco ou nada combativas, não raro submissas à situação (“Não podemos manchar a imagem do governo”), enquanto a categoria sofre, às moscas, com os mais diversos ataques. Conselhos e associações de moradores que muitas vezes empreendem políticas assistencialistas tão-somente – a exemplo da política de distribuição de leite nas comunidades (‘Leite para todos’) – são carcomidas por candidaturas intestinas ou mesmo empregos em cargos comissionados concedidos pelos que estão no poder, enfraquecendo com isto o horizonte de luta. Movimentos estudantis que na verdade servem em muitos casos como palanques e escola para futuros políticos profissionais de alta cúpula. Nos holofotes do sufrágio, partidos  se capitalizam, enquanto mais e mais à sombra ficam os movimentos sobre os quais se projetaram e ainda se projetam.

Em suma, temos duas batalhas a travar: enfrentar governos e patrões e, ao mesmo tempo, construir dentro dos movimentos autonomia frente aos partidos políticos. Não existe salvador da pátria nem partido “menos ruim”: quem está em cima automaticamente oprime os de baixo. E, para que as ações estejam sempre pautadas nos anseios coletivos, não podemos permitir a atuação aparelhista e de vanguarda dentro dos movimentos. Apenas a construção independente e horizontal das mobilizações pode impedir a projeção de lideranças cristalizadas e a subordinação das pautas às vontades de poucos.

Ao relembrarmos as lutas populares, fica claro para nós as represálias com as quais sempre sofremos, seja qual for o governo. Evidente: para se manter no topo do poder estatal nesta falsa democracia é necessária aliança com o empresariado, classe que lucra com a exploração diária da maioria. E quem se junta com opressor, opressor se torna.

Por isso, não devemos depender de políticos profissionais ou de partidos: eles usurpam o nosso poder para nos submeter. Nós de baixo, nas bases da pirâmide social, devemos tomar a responsabilidade nas mãos e pensar, a partir de onde nossos pés pisam, como lutaremos juntos para acabar com a ditadura velada destes setores. Significa que não devemos ficar parados assistindo os de cima tirarem nossos direitos e usarem nossos recursos contra nós. O poder está em nossa organização coletiva, e não na prefeitura ou na presidência, ilusão criada para que nos continuem dominando.

A eleição é um evento de encenação, no qual a classe gerenciadora da política finge estar ao lado do povo para, depois de passado o pleito, destruir comunidades inteiras com os tratores do progresso e reprimir quem protesta com os “cacetetes democráticos”, como diria um companheiro de luta. Passada a consulta nas urnas, que como resultado trouxe o alinhamento entre governo do estado e prefeitura, sente-se os ventos da repressão a caminho, junto com o barulho das obras das construtoras. É tarefa do povo organizado combater autonomamente este processo e, aos poucos, deixar às vistas de todos esta ditadura velada. Só a nossa resistência pode parar as máquinas, pois na prática a nossa política, a política dos de baixo, é sempre ‘tratorada’ pelas urnas.

 

Coletivo Anarquista Núcleo Negro

Outubro 2012