AS LUTAS SOCIAIS NO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DO PODER POPULAR

Nem centro nem periferia: outras geografias, calendários e pedagogias

Junho de 2013 é um marco para o Brasil: momento singular em seu processo histórico de lutas sociais do período recente. Há uma ampliação das margens da política de nossa época. As manifestações que tomaram nossas ruas e oxigenaram a atmosfera social com ares de contestação da ordem vigente nos possibilitam mais espaço para descolonizar a política controlada pelas astúcias do poder dominador.

Não é à toa que se fala em Primavera Brasileira. Mas esta primavera não dará seus frutos por mera geração espontânea: é necessário trabalhar ora mais dura ora mais suavemente, para que haja uma realidade digna de assim ser chamada e que seus frutos tornem farta nossa mesa da solidariedade e independência de classe.

Precisamos aprender de maneira diferente, engajadas/os em práticas sociais que fomentem esta outra perspectiva a fim de construir horizontes próprios nossos. Por isto falamos em outras geografias, calendários e pedagogias. Dentro da luta de classes, devemos mudar muitas lógicas de saber-poder para que desde já originemos nossos horizontes, ocupando o espaço e o tempo para gestar o que desejamos fazer nascer.

Dai que também falamos nem centro nem periferia. Contra qualquer forma centralista de poder, que necessariamente constrói suas margens e gera antagonismo de classes: opressores (exploradores/elitista/centro) e oprimidos (explorados/popular/periferia). Nossa trincheira é contra os esquemas de dominação que vêm se desenvolvendo historicamente, conseguindo vencer as forças de resistência que ainda não avançaram para um patamar de organização que lhes possibilite ser vitoriosamente mais poderosos diante da luta.

Desenvolvemos aqui uma análise critica e propositiva no sentido de fortalecer o campo combativo de esquerda para enfrentar o neoliberalismo e colaborar para a construção do Poder Popular.

 

O Movimento Passe Livre na luta de classes

O MPL é resultado de uma experiência de luta com cerca de dez anos dentro de um tema central que é o transporte coletivo, no jargão dos direitos, um direito-meio, atrelado a outros. Um direito que influencia nas condições de exercício da livre circulação das pessoas no espaço-tempo social, interferindo na conformação das subjetividades e imaginário social, nas condições materiais e imateriais da tensa relação regulação-resistência social.

Neste contexto, o MPL cumpre uma importante função fomentadora de potenciais populares de revolta. Um movimento social na contramão da lógica privatista e legitimadora das apropriações que mercantilizam os meios fundamentais para se viver: os transportes devem servir para os sujeitos sociais poderem transitar a fim de acessar ou mesmo criar caminhos os mais diversos para seu destino. Relaciona-se com o que se tem chamado de direito a cidade.

Muita gente pouco consegue se deslocar ou busca meios alternativos: caminhando ou pedalando, que são duas alternativas limitadas, de acordo com as pessoas. As tecnologias motorizadas que potencializam os meios para o atendimento desta necessidade do livre trânsito estão submetidas aos domínios da propriedade privada capitalista que se tenta naturalizar de modo que retroalimente toda a cadeia de acumulação de capital ao passo que garante melhores condições para a manutenção da engrenagem de produção de subjetividades politicamente dóceis e economicamente úteis a toda sorte de sistemas autoritários.

Com tal nível de exploração que se pretende perpetuar, pela dominação da mente ou força física, o meio social se constitui em algo como um barril de pólvora prestes a explodir. Daí que podemos dizer que o MPL colaborou para que fosse acesa a faísca que faltava para eclodir um amplo movimento de revolta fruto de uma enorme gama de efeitos da dominação capitalista. Apesar de o que possa ser acaso histórico, é importante reconhecermos o papel deste movimento em fomentar permanentemente a ideia do Passe Livre que influencia na vontade coletiva de reação, espírito de combatividade pulsante e contido nas artérias do corpo social.

Entendemos o Passe Livre como parte do que chamamos de campo libertário, o que se expressa em seus princípios. Federalismo, horizontalidade e autogestão social são algumas das bases deste coletivo que subverte as regras do jogo político autoritário e neoliberal bebendo da fonte da tradição libertária e organizada, mesmo sendo um movimento mais aberto em relação a outros que tem uma estrutura mais dura.

Não é por acaso a convergência deste espírito militante com a enorme insatisfação social com a política institucionalizada. É importante destacar que o nível de saturação com este sistema tem crescido, o que, em tese, cria melhores condições para semear no meio social as sementes da organização popular, cultivar as condições para o fortalecimento da cultura combativa do povo. A luta na rua precisa ser uma escola, mas só ela não é o suficiente para avançarmos em força social que consiga mudar a geografia do poder atual.

 

Ação direta como escola e ferramenta de luta

Assim melhor entendemos este terreno para nele termos maiores condições de influenciar, bem como o sentido, uso e repartição do tempo social, que influencia em toda a organização da vida em sociedade. Daí mexemos nos calendários do poder, nos tempos quase soberanos das burocracias que tem na exploração do trabalho burocratizado um de seus meios de controle. Os termos precisam ser invertidos: o povo que precisa dar as regras e arbitrar o jogo a ser por ele mesmo inventado, assim como permanentemente atualizado. Esta é a escola onde aprendemos e partejamos o mundo que, lutando, ambicionamos.

Quando as manifestações recentes eclodiram, houve grande perplexidade da classe dominante e na sequência um processo de agilização de alguns projetos engavetados nas instâncias estatais. Apesar de ser ínfimo, não podemos deixar de reconhecer como conquista, em termos pragmáticos, simbólicos e organizativos. Diversos setores da sociedade, distintamente organizados, com pressão social para fazer valer sua vontade, conseguiram barrar o aumento de passagens, influenciar na agenda política institucionalizada (ex: derrota da PEC 37), embora que infimamente, uns mais, outros menos, criando melhores condições para a luta avançar.

Sem dúvida, uma lição básica a tirar é a de que autonomia e solidariedade de classe são mais que palavras na ação direta. Fundamentalmente encarnam nossa disposição política para transformar a realidade com compromisso militante para sua ampla e firme sustentação por meio da construção do Poder Popular. Por isto, insistimos, nossas urgências não cabem nas urnas, como também nas ruas. Esta é parte da nossa luta, que vai além, e tem nestes momentos espaços possíveis para dar saltos qualitativos na atmosfera social e contagiar mais amplamente setores da sociedade com o espírito combativo necessário ao enfrentamento da atual sociedade de controle.

Para além das ruas: sempre ombro a ombro com a classe

Nem a frente, arrastando, nem atrás, sendo arrastada. Nem também se trata de ouvir as vozes que vem das ruas: precisamos estar em diálogo com estas em sua enorme diversidade, porque somos parte delas. Devemos ser presença atenta para colaborar na organização das indignações e potenciais de revolta rumo a um caminho de ampliação da forca social de luta em perspectivas de curto, médio e longo prazos. Nem todas/os estarão dispostas/os a atuar local e globalmente. Todavia, é central: a luta imediata precisa ser compreendida como parte de um contexto mais amplo contra um conjunto de forças que nos oprimem. Isto tem a ver com o chamamos de classismo e programa anarquistas.

Neste âmbito, falamos de uma esfera que não é apenas a do movimento social. Em geral, as lutas mais específicas não se veem vinculadas a questões que abarquem uma gama de batalhas e dimensões da realidade que vão além de seu grupo ou movimento. É importante haver instâncias de fortalecimento da luta para além da organização popular, espaços aglutinadores de militantes de origens distintas unidas/os por esta opção de classe a fim de mudar as linhas da geografia do poder bem como seus calendários.

Vale então destacar nossa compreensão deste desenho que deve tomar as forças de luta. Basicamente há o nível social, sócio-político e o político. Trata-se de uma maneira simples e coerente com os princípios libertários de como deve ser desenhado o campo de luta enquanto gestamos desde já a outra realidade possível que tencionamos construir. Os fins já devem estar contidos nos meios, engravidando e partejando a realidade. Colheremos o que estamos plantando, pacientemente no longo parto da história.

Tal visão é fruto de autocrítica e aprendizado na história de nossa tradição. Além da luta direta dos movimentos em termos imediatos, é necessário que existam espaços de articulação destas lutas, nível sócio-político, bem como outra instância, a da organização política, que devem se constituir suficientemente fortes para resistir a momentos turbulentos como o atual e maiores.

A organização política é um organismo com mais fôlego em diversos aspectos e cumpre o papel de colaborar na potencialização das forças sociais de luta visando fortalecer a classe popular na tarefa histórica de destruir a dominação hegemônica capitalista e estatista de hoje. Ocupa-se de tarefas para as quais os movimentos específicos não tem fôlego e taticamente desuniriam a classe se fossem pautadas dentro dos movimentos. Aqui entra nossa concepção de ideologia – no marxismo, “falseamento da realidade”, contrário ao que defendemos.

Ideologia é o conjunto de ideias, crenças, aspirações que temos para a realidade. É o que chamamos de socialismo libertário ou anarquismo. Não é ciência, é política. É do campo da organização política e não deve ser a pauta do movimento social.

O termo partido ficou carregado por valores nos quais não nos reconhecemos porque, inclusive, contra nós mesmos atuaram historicamente, apesar de já termos reivindicado o termo em nossa tradição, sob outro conteúdo (federalista, no caso). Hoje utilizamos a expressão organização política para expressar esta ideia de um organismo que não esfalece diante do poder opressor e que possa aprender e ensinar na própria luta, atravessando adversidades mais sérias.

A opção de linguagem é fruto de uma concepção diferente e se reflete em nossa prática política. É de forma e de conteúdo. Naquela divisão dos âmbitos, por exemplo, a organização política estabelece relação de influência mútua com o âmbito social. Organicamente, militantes com definição ideológica e atuação em movimentos sociais se unem na instância política para construir melhor preparação para a luta a fim de que esta dê frutos consequentes e consistentes rumo à construção do Poder Popular.

Desta maneira, não podemos deixar de destacar que quem faz a revolução não é a esfera política: é o povo com a autodeterminação de suas organizações! A organização política deve influenciar saudavelmente, bem como é influenciada, sem ideologizar o movimento. As organizações sociais e populares não são correia de transmissão dos partidos, como costumamos ver e ouvir tão corriqueiramente nestes tempos de figuras partidárias desgastadas.

 Indicações para autocrítica e agenda da esquerda combativa

Neste sentido, julgamos que é de enorme centralidade a dimensão da autocrítica para o fortalecimento desta esquerda, sobretudo diante de suas muitas falhas que resultam no desmonte das lutas sociais e no crescimento quase onipresente e onipotente do neoliberalismo.

O elevado grau de dispersão e confusão da “massa” é um indicador do fracasso da esquerda em organizar as indignações da sociedade, o que se relaciona à falta de trabalho de base e distanciamento do povo. O modus operandi desta opção política tem levado ao quadro atual de crescimento de um imaginário social de aversão a política e tudo o que lhe diga respeito. Quem entra no jogo está interessado em “ganhar o seu” ou é massa de manobra das cúpulas partidárias.

A opção, neste caso, é por ocupar cargos de direção, seja no movimento ou no Estado, enquanto a base vai a reboque nesta lógica, sendo desmobilizada, como podemos ver no atual contexto sócio-político. Temos um claro desmonte de movimentos sociais outrora bastante atuantes que fizeram parte de um período histórico que, depois, levou à conformação de toda uma cadeia de ocupação de cargos ou criação de instituições burocráticas sociais ou mesmo estatais. É justo que a sociedade de várias maneiras esteja revoltada contra esta lógica que tem destruído os movimentos de luta.

Isto se expressa na reação das pessoas diante das bandeiras e símbolos desta linhagem de política institucional. Não é uma coisa simplesmente orquestrada pela direita nazifascista, junto com seus organismos midiáticos, etc. É resultado de um histórico de cinismo político que parece querer brincar com a vontade do povo.

Contudo, não somos favoráveis ao ato de baixar à força as bandeiras da companheirada na rua se manifestando. Nossas divergências ideológicas e teóricas não nos dão o direito de agir assim com outras forças políticas hoje, mesmo que estas façam parte de organizações autoritárias que historicamente nos reprimiram. Estas organizações precisam de um profundo processo de autocrítica porque a reação que recebem pode ser indício de perda real e irrecuperável de sua legitimidade social.

Vale destacar que primamos pelo protagonismo popular. Mais valem levantadas as bandeiras das organizações sociais e populares combativas de que as das organizações políticas. Também há um debate crucial a respeito de questões que supostamente seriam de origem técnica, de linguagem, mas que são fundamentalmente políticas. Problemas que envolvem opção de classe. É necessário ter-se muito cuidado para não cair nas armadilhas do discurso técnico.

Portanto, ação direta “na veia”! Garantir a disposição de ocupar a rua a fim de pressionar as burocracias e cada vez mais ampliar nossa forca social de luta; fomento permanente de diversos tipos de ações nas periferias do poder para garantir melhores condições de reconhecimento da necessidade de autonomia e solidariedade da classe, visando nossa melhor organização.

Como pautas mínimas mais específicas, lutar por forçar a ampliação do espaço de poder do povo na gestão dos transportes; passe-livre para toda a população; fortalecer a solidariedade pela libertação dos presos políticos e campanha contra a criminalização da pobreza e das lutas. Desta maneira, é necessário ir além da esquerda punitiva porque “todo preso é um preso político”. O discurso criminal camufla os conflitos sociais querendo esvaziar toda sua carga política. Isto faz parte do governo da miséria através de um sistema penal. Afinal, “o povo é revoltado; violento é o Estado”!

 

Anarquia? Só sendo socialista! Socialismo? Só sendo com liberdade!

 

Lutar, criar poder popular!

 

Núcleo Negro

Junho de 2013